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    100 anos da Semana de Arte Moderna: Graça Aranha e a soberba dos modernistas paulistanos

    Idealizador do evento, o escritor maranhense, ao longo dos anos, foi posto em plano secundário pela vanguarda paulista


    Ao longo de décadas, o nome de Graça Aranha perdeu força no contexto do modernismo. Narrativa construída nos últimos tempos, inclusive agora pelo governo de São Paulo, a Semana de Arte Moderna – que hoje celebra o seu centenário – é um fenômeno eminentemente urbano e paulista.

    O bairrismo intelectual, soberbo, menospreza, só para citar alguns exemplos, a importância dos cariocas Di Cavalcanti, Ronald de Carvalho e Villa-Lobos, do pernambucano Manuel Bandeira, do mineiro Agenor Barbosa e do maranhense Graça Aranha, tido por Mário de Andrade como uma espécie de “grileiro” da Semana de 22.

    Embora “cancelado” pelos paulistas, foi de Graça Aranha a ideia do evento, que também ajudou a levantar recursos para bancar a festa e fez a conferência de abertura daquele que é reconhecido como um divisor de águas no panorama cultural brasileiro. 


    Por Félix Alberto Lima*

    “Nem sempre a fatura desse grupo é homogênea, porque cada um dos artistas obedece fatalmente aos impulsos misteriosos do seu próprio temperamento, e assim mais uma vez se confirma a característica da arte moderna, que é do mais livre subjetivismo”. Trocando em miúdos, era “cada um por si” na Semana de Arte Moderna, de acordo com as palavras do maranhense Graça Aranha, no dia 13 de fevereiro de 1922, na conferência de abertura do evento que ficou marcado como um divisor de águas na produção artística brasileira.

    A fatura quase nada homogênea do futuro não era uma mera questão semântica. Por trás da vanguarda paulista, que ansiava romper com o passado e incorporar ao Brasil a estética futurista que já fazia barulho na Europa, estava a oligarquia cafeeira, a família tradicional, cristã. E mesmo alguns dos modernistas ou eram de famílias influentes, endinheiradas, ou tinham laços com a elite intelectual de São Paulo.

    A ideia de que havia um grupo coeso identificado tão somente com novos modelos de expressão artística, essa ilusão gregária que recaía sobre a Semana de Arte moderna, ilustrava com frequência o noticiário. Internamente, porém, ecoavam mais alto as diferenças. Sobre literatura, artes, filosofia, visão de mundo… E não demorou muito para Graça Aranha virar o alvo preferencial dessas diferenças.

    Culto, articulado, de ideias humanistas e reformistas (e até certo ponto controversas) pela experiência de anos vividos na Europa, frequentador das altas rodas, em pouco tempo Graça Aranha viria a ser – como se diz hoje no jargão das redes sociais – “cancelado” pelos principais expoentes paulistas do modernismo.

    Forjou-se, inicialmente nos bastidores e depois em público, uma acentuada ciumeira à projeção e liderança de Graça Aranha, àquela altura figura badalada, com alguns livros publicados, como o romance Canaã, de 1902. Já os paulistas, até então pouco conhecidos no campo editorial, não queriam dividir com um escritor nordestino, “de elegância europeia”, o protagonismo de uma festa e de um movimento que haveriam de entrar para a história. Desadornado na autoironia, foi o paulista Guilherme de Almeida quem cunhou a frase “Éramos os playboys intelectuais de 1922”.

    Realizada de 13 a 18 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, a Semana de Arte Moderna teve como propósito reunir o que havia de mais atual na literatura, nas artes plásticas, na música, na arquitetura e no teatro. Dela participaram Di Cavalcante, Anita Malfatti, Mário e Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Manuel Bandeira, Victor Brecheret, Guiomar Novaes, Heitor Villa-Lobos, Ronald de Carvalho, Oswaldo Goeldi e Graça Aranha, entre outros.

    O maranhense havia retornado da Europa em novembro de 1921, depois de atuar por alguns anos como diplomata na Suíça, Noruega, Dinamarca e França. Nascido em São Luís no dia 20 de julho de 1868, estava com 54 anos à época da Semana de Arte Moderna, enquanto que os demais modernistas eram bem mais jovens, a maioria com idade inferior a 30 anos.

    Graça Aranha foi discípulo de Tobias Barreto nos tempos da faculdade de Direito no Recife. Depois tornou-se amigo e acólito de Joaquim Nabuco, que lhe abriu as portas da diplomacia e das relações com a política e a intelectualidade. Foi Nabuco quem apresentou o maranhense à família Prado, de forte poder econômico e influência na vida social e cultural de São Paulo.

    Na Europa, Graça Aranha esteve em contato com diferentes correntes literárias e linhas de pensamento. Pressentiu a gênese da revolução modernista antes mesmo do modernismo, em sutil mimetismo com a filosofia. Retornara ao Brasil com a ideia de organizar um festival de artes e literatura.

    Confira os livros lançados para celebrar o centenário

    Tem romance, reunião de textos dispersos, diário e muita crítica. O centenário da Semana de Arte Moderna, realizada no em fevereiro de 1922, com participação de Mário e Oswald de Andrade, Di Cavancanti, Heitor Villa-Lobos e mais um punhado de artistas, tem movimentado o mercado editorial brasileiro.

    Textos já consagrados sobre a Semana e seus personagens – como “A brasilidade modernista”, de Eduardo Jardim, e “Mário de Andrade: exílio no Rio”, de Moacir Werneck de Castro —voltam às livrarias ao lado de obras literárias como “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e “Parque industrial”, de Pagu.

    Confira os últimos lançamentos relacionados à efeméride. (Do site Tem Quote)

    Em conversa com o pintor Di Cavalcanti, na livraria de Jacinto Silva, em São Paulo, o escritor e diplomata associou-se a um projeto semelhante do grupo paulista para idealizar a Semana de Arte Moderna. Montaram a programação, convidaram artistas, definiram a data. Contudo, faltava o principal. Quem iria bancar o dispendioso evento? Graça Aranha sugeriu então que o grupo procurasse seu amigo Paulo Prado, que de pronto assumiu, com outros empresários, todas as despesas da festa modernista.  

    Paulo Prado, além de fazendeiro, era escritor, ensaísta e colecionador de arte. Graça Aranha, casado com Maria Genoveva, era tido como interlocutor de alguns negócios da família Prado e mantinha um longo caso extraconjugal com a irmã de Paulo, Maria Nazareth, esposa de Oduvaldo Pacheco Silva.

    Ao longo dos anos, o nome de Graça Aranha foi perdendo força no contexto da Semana de Arte Moderna e do próprio modernismo. Não por acaso, página do governo de São Paulo, aberta agora na internet para celebrar o centenário do movimento, faz questão de frisar que a Semana de 22 é um fenômeno eminentemente urbano e paulista. O bairrismo menospreza um outro Brasil, talvez rural, dos cariocas Di Cavalcanti, Ronald de Carvalho e Villa-Lobos, do pernambucano Manuel Bandeira e do mineiro Agenor Barbosa, só para citar alguns nomes.

    Como esquecer atores de outras regiões do País que ajudaram a construir a Semana e o pensamento modernista? Como deixar em segundo plano alguém que fez a conferência de abertura do evento? Como não lembrar que foi Graça Aranha também o responsável por convidar artistas do Rio a se juntarem aos paulistas na programação da festa? Como ignorar o fato de que as primeiras reuniões do grupo modernista aconteceram no hotel paulista onde Graça Aranha estava hospedado?  

    A grilagem do modernismo

    Em reportagem do Jornal do Comércio, à época da Semana de Arte Moderna, mencionada no livro 1922, a semana que não terminou (Companhia das Letras, 2012), de Marcos Augusto Gonçalves, Graça Aranha era reverenciado como a grande figura pública “à frente dessa iniciativa que pretende fazer uma completa demonstração das nossas modernas correntes estéticas”. Ainda no auge do evento no Teatro Municipal, é fato que Graça Aranha, pela sua retórica, recebera o reconhecimento da imprensa, naturalmente com algumas exceções.

    Obtivera também, de início, o apreço público daqueles que com o tempo se transformaram nos “papas” do modernismo no Brasil, a ponto de ser chamado de “protomártir da nova era”, por Oswald de Andrade; e de “a antemão da Semana”, por Mário de Andrade. Mas, depois, fora estigmatizado e desprezado intelectualmente pelos dois escritores paulistas, que assumiram, sem cerimônia, a paternidade da Semana de Arte Moderna.

    Ao longo de décadas, Mário de Andrade liderou uma espécie de resistência ao nome de Graça Aranha. O autor de Pauliceia desvairada considerava o escritor maranhense como um potencial aproveitador e “interesseiro”, capaz de “grilar” o happening modernista. “Grilar”, de acordo com a diatribe de Mário, era usurpar dos paulistas o papel de legítimos “latifundiários” do modernismo.


    Dez artistas que fizeram a Semana de Arte Moderna


    Mário de Andrade dizia aos quatro ventos que o modernismo não viera ao Brasil “dentro da mala de Graça Aranha”. No livro de Marcos Augusto Gonçalves, há referência a uma palestra de Mário, de 1942, nas comemorações dos 20 anos do festival. Perguntado sobre quem teria sido o autor da ideia da Semana de Arte Moderna, o autor de Macunaíma respondera com a seguinte evasiva: – Por mim não sei quem foi, nunca soube, só posso garantir que não fui eu. Mário dizia apenas que “alguém” lançara a ideia dos festivais de literatura. – Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di Cavalcanti? – titubeava.

    No livro de memórias Um homem sem profissão (editora Globo, 1990), também Oswald de Andrade destila sua imanente antipatia ao escritor maranhense, alguém “geralmente confuso e parlapatão, filho duma abominável formação filosofante do século XIX”.   

    O negacionismo acadêmico  

    Levado pelo amigo Joaquim Nabuco e apoiado por Machado de Assis, Graça Aranha foi um dos fundadores, em 1897, da Academia Brasileira de Letras, mesmo sem ainda ter publicado um único livro. Escreveu Canaã ainda no Espírito Santo, mas só o publicou quando estava na Europa, em 1902. O livro é tido como um romance de temática modernizante, povoado de questões filosóficas e multiétnicas, e por isso mesmo pouco lido nos anos que sucederam à sua publicação.     

    Em 1924, Graça Aranha rompeu com a Academia Brasileira de Letras, acusada por ele de passadista, alheia a uma produção literária de caráter nacional e avessa ao modernismo em ebulição no Brasil. “Se a Academia se desvia desse movimento regenerador, se a Academia não se renova, morra a Academia!”, bramiu o escritor.

    Ao se voltar contra a ABL e o “arcadismo” latente de muitos intelectuais de vanguarda no Brasil, Graça Aranha fora vítima, dias depois, da ira de um Oswald de Andrade supostamente acossado. Em artigo no jornal A Manhã, ele brada: “Graça Aranha é um dos mais perigosos fenômenos de cultura que uma nação analfabeta pode desejar. Leu mais duas linhas do que os outros, apanhou três ideias além das de uso corrente e, faquirizado por uma hipnose interior, crédulo e ingênuo, quer impor à outrance os seus últimos conhecimentos, quase sempre confusos e caóticos”.

    A estética do cosmos

    Parte da imprensa paulista considerou o manifesto “A emoção estética da arte moderna”, de Graça Aranha, na abertura da Semana de 22, decepcionante por não defender, objetivamente, a chamada escola futurista. Em editorial do dia 14 de fevereiro de 1922, o jornal A Gazeta cobrava algo mais contundente: “Era de se esperar que uma arte que pretende ser nova recebesse do seu paladino ilustre a marca indelével e elucidativa de algum princípio também novo com que a pretensa escola se apresenta à conquista de modernos ideais”.

    Do subjetivismo estético defendido por Graça Aranha enxergava-se qualquer coisa, inclusive o próprio passadismo a que a Semana se opunha. “É no sentimento vago do Infinito que está a soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor”, pregava o maranhense no palco do Teatro Municipal.

    Nas palavras de Graça, toda manifestação estética é precedida de um movimento de ideias gerais, “de um impulso filosófico, e a filosofia se faz Arte para se tornar vida”. O manifesto é carregado de senhas e algumas pistas falsas, como se depura no seguinte trecho:  “E eis chegado o grande enigma que é o de precisar as origens da sensibilidade na arte moderna. Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo”.

    Se, de um lado, o individualismo exacerbado defendido por Graça Aranha, ateu convicto, causava arrepios em parte da intelectualidade que flertava com os preceitos do socialismo emergente (com a Revolução Russa de 1917); de outro, a inspiração darwinista do maranhense ia de encontro à formação religiosa de muitos modernistas paulistas.

    Mas o individual era, em tese, a identidade nacional; e a realidade cósmica, o caráter universal. É essa comunhão entre o átomo e o cosmos a base do pensamento modernista de Graça Aranha, que muitos faziam questão de não compreender. Do alto de sua bagagem intelectual, e na azáfama da organização de uma semana de rupturas, Graça Aranha mistura, de chofre, Darwim, Rousseau, Cézanne, Debussy, o romantismo, o cosmos, o Renascimento, a Revolução Francesa, Rodin, a filosofia e o escambau no manifesto.

    Um cosmopolita incompreendido e controverso

    Graça Aranha pregava a integração do espírito humano à unidade do cosmos. Incompreendido, em certas ocasiões suas ideias foram motivo de pilhéria, inclusive pelos próprios modernistas.

    O livro A estética da vida, de 1921 – como reiterado um ano depois em manifesto lido na abertura da Semana de Arte Moderna – expunha a intransigente e complexa defesa da arte como locomotiva da “unidade do cosmos”. Em conferência aberta, em 1942, Mário de Andrade tratou o livro de Graça Aranha com escárnio.  

    Alguns episódios na seara dos negócios expuseram a personalidade controversa de Graça Aranha ante seus amigos modernistas. Como amigo e interlocutor comercial da família Prado, o maranhense fora envolvido em polêmica, em 1917, por intermediar suspeita transação do café brasileiro para a França. Fato que o levou a ser classificado por Lima Barreto como o “caixeiro-viajante” da família Prado.   

    Do escritor e crítico Sérgio Milliet recebeu, em artigo na revista Lumière, em 1922, a advertência acerca da verdadeira estética perseguida pelos futuristas brasileiros: – “Graça Aranha, autor de Canaã, livro já traduzido em francês, e de Estética da vida, membro da Academia Brasileira, teve a enorme coragem de romper com o passado para se colocar à frente dos jovens. Ele tem entusiasmo, convicção e influência, mas temo que não compreenda bem o verdadeiro intuito dos modernos, que não é a procura de uma liberdade absoluta, mas sobretudo de novas regras de construção”.

    Di Cavalcanti, apesar de atribuir a Graça Aranha o “caráter festivo” da Semana de 22, enxergava no escritor e diplomata um misto de sabedoria e iniludível simplicidade. No livro de memórias Viagem da minha vida (Civilização Brasileira, 1955), ele assevera: “Fiz-me seu amigo e dele recebi admiráveis lições de cordialidade, distinção e inteligência. Sua grande ingenuidade de eterno adolescente foi o maior prêmio que ele me deu. Graça Aranha é para mim sempre como uma árvore florida diante da janela do meu espírito”. 

    Graça Aranha faleceu no dia 26 de janeiro de 1931, no Rio de janeiro, aos 63 anos.

    A semana revisitada

    O centenário da Semana de de Arte Moderna provou polêmicas sobre a importância e dimensão do movimento. O escritor e jornalista Rui Castro em entrevistas e em suas colunas na Folha de S.Paulo acusa os integrantes os ‘modernistas’ de “não apenas se esqueceram rapidamente das críticas que faziam à Academia Brasileira de Letras, como buscaram um lugar entre os acadêmicos. Entre eles, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchina e Manuel Bandeira. Por sua vez, Oswald de Andrade, o crítico mais feroz da Academia, não demorou muito para inscrever seu livro A Estrela do Absinto, no prêmio da entidade”.

    Assista a entrevista do jornalista ao programa Roda Viva, que foi ao ar na última segunda-feira pela TV Cultura.


    *Poeta, jornalista e membro da Academia Maranhense de Letras

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