Por Joaquim de Carvalho, no DCM
Em um artigo publicado em 1899, “O Justo e a justiça política”, Rui Barbosa escreveu que o Brasil poderia ter tribunais de sobra, mas jamais teria justiça, se o dever se ausentasse “da consciência dos magistrados”.
No mesmo texto, comparando a ação do juízes da época ao julgamento de Jesus Cristo, ele disse que juízes que não têm coragem de decidir conforme a lei e a própria consciência são como Pôncio Pilatos.
“O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”, escreveu.
Nesta quarta-feira, 19 de dezembro, dois juízes brasileiros se destacaram. Um, Marco Aurélio Mello, pela coragem de tomar uma decisão coerente com um princípio constitucional, o da presunção de inocência.
O outro, José Antônio Dias Toffoli, pela covardia.
Marco Aurélio é relator de duas ações diretas de constitucionalidade que tramitam no Supremo Tribunal Federal desde o primeiro semestre de 2016.
Uma delas foi apresentada pela OAB, logo depois que, no julgamento de um HC, auge da Lava Jato, a corte admitiu a prisão a partir da condenação em segunda instância.
Em dezembro do ano passado, Marco Aurélio encaminhou essas duas ações para julgamento.
Ele acatou a tese da OAB: o artigo 283 do Código de Processo Penal é claro como água cristalina:
“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”.
O Código de Processo Penal está em vigor e, nessa condição, se o artigo 283 é coerente com a Constituição, ele deve ser respeitado e, assim sendo, todos os brasileiros que ainda não têm condenação definitiva— caso de Lula — devem ser postos imediatamente em liberdade.
Antes mesmo de preparar as ações para julgamento, com o seu relatório, Marco Aurélio não escondeu o que pensa.
No dia em que o STF autorizou a prisão em segunda instância, fevereiro de 2016, ele disse que a corte havia rasgado a Constituição.
Mas ele não foi apressado — nem lento, considerando os prazos do Supremo — na análise das ações que questionaram esta decisão: demorou mais de um ano para relatar os processos, e encaminhá-los para votação.
Na época em que mandou entregar as ações para a então presidente da corte, Cármem Lúcia, Lula não tinha sido condenado em segunda instância.
Portanto, a bem da verdade, o ministro jamais poderá ser acusado de atuar para beneficiar um réu específico.
Era a tese que o mobilizou.
Sua decisão, leal a um princípio da Constituição, nunca foi, certamente, popular, vai contra a corrente da Lava Jato.
E é exatamente por isso que merece ser elogiada por todos que amam a Justiça.
Mas Cármem Lúcia, por causa de Lula, preferiu não pautar o julgamento.
No caso citado por Rui Barbosa, há o relato de que Pilatos, consciente da inocência de Cristo, preferiu não decidir e, para não contrariar os poderosos da época e agradar as massas, transferiu a estas o dever de sentenciar.
Não há, perante a história, salvação para juízes assim.
Dias Toffoli tem uma opinião parecida com a de Marco Aurélio Mello sobre prisões em segunda instância.
Ele já se manifestou nesse sentido, em mais de um julgamento, mas hoje preferiu tomar uma decisão que agrada aos poderosos e também a setores barulhentos das massas.
Do ponto de vista estritamente jurídico, há quem conteste a legalidade de seu ato — cassar uma liminar relacionada a questões de constitucionalidade.
Só o plenário do STF poderia contrariar uma decisão — dada em caráter liminar — do relator da ação, caso de Marco Aurélio Mello.
Mas Dias Toffoli, como presidente da corte no exercício do plantão, preferiu o caminho que, por certo, não agrada Marco Aurélio. Nem os amantes da Justiça.
Mas deixa satisfeitos os analistas convidados pela Globo para comentar (na verdade, detonar) a liminar que restabeleceu o princípio constitucional da presunção de inocência.
“Tempos estranhos estamos vivendo”, já disse algumas vezes o ministro Marco Aurélio Mello.
Estranhos, mas não inéditos.
Na história da humanidade, haverá sempre os covardes e as pessoas de coragem.
Há notícia de que, pela decisão que tomou, Marco Aurélio Mello recebeu ameaças por telefone e por e-mails.
Tais manifestações devem ser recebidas como o atestado de que o ministro honra a toga que veste.
Não lhe faltou coragem.
Já Dias Toffoli, como Pilatos, teve um comportamento que, certamente, não entrará para a história como paradigma da atuação de um magistrado.
Mas, a essa altura, Dias Toffoli deve estar recebendo telefonemas e e-mails com elogios dos poderosos e de sua massa de manobra.