Autos do crime da baronesa considerados desaparecidos estavam com Sarney há mais de 20 anos

A notícia de que os autos do julgamento da Baronesa de Grajaú, considerados perdidos no tempo até reapareceram em 1975 no livro Os Tambores de São Luís de Josué Montello, estavam guardados há mais de 27 anos na casa de Sarney em Brasília, não é nova, mas é uma novidade.
Apesar do sucesso do romance e do próprio Montello encaminhar os autos do processo ao Museu Histórico e Artístico do Maranhão acompanhado de declaração escrita à mão, onde diz que “o senador José Sarney, que possuía estes autos, teve a bondade de nós oferecer”, não houve nenhum questionamento público sobre a razão pela qual Sarney tomou posse desses autos.

Quem autorizou ou o nomeou fiel depositário de documento histórico de tamanha relevância?
Nada, nenhum pio. Ministério Público, Tribunal de Justiça, Imprensa, sociedade civil organizada, nada. Era como se a cegueira do ensaio de José Saramago fosse congênita no Maranhão, quiçá no Brasil.
No penúltimo sábado, 12 de março, vários jornais e sites de visibilidade nacional republicaram uma extensa matéria sobre o crime da Baronesa produzida pela BBC News Brasil, sem se atentar para o que publicavam.
O episódio, na verdade, é tratado com indiferença pela BBC. É apenas parte da narrativa.
Com a maior naturalidade do mundo, ainda mais em se tratando de veículos de imprensa, a reportagem faz referência ao reaparecimento dos autos em Os Tambores de São Luís e ao que revelaria Josué Montello em Diário do Entardecer, lançado em 1991.
“Sarney teria recolhido os documentos em uma pilha de processos antigos do Tribunal de Justiça do Maranhão, onde trabalhou na juventude, que seriam jogados fora”, diz o texto assinado por Juliana Sayuri, ‘de Toyohashi (Japão) para a BBC News Brasil.
Será que não fizeram as contas dos anos que separam a juventude da maturidade de Sarney, então no seu primeiro mandato de senador?
O prestígio da BBC não é suficiente para averiguar com o próprio Sarney sobre a veracidade do relato de Josué e, se confirmado, saber por qual motivo ele teria ficado tanto tempo de posse de documentos de valor histórico incomensurável?

Parquet obnubilado
O problema jornalístico da BBC, no entanto, é problema da BBC.
O que não se pode dizer o mesmo, quando o Ministério Público reproduz a versão do achados e perdidos.
Responsável pela acusação, prisão e julgamento de Anna Rosa Viana Ribeiro, uma escravocrata da alta sociedade maranhense, o jovem promotor Celso Magalhães pagou um alto preço por sua ousadia.
Pouco mais de um ano após o julgamento, em março de 1878, ele é demitido “a bem do serviço público”. O esposo de Anna Rosa, Carlos Fernando Ribeiro, assumiu a presidência da província do Maranhão e não perdeu tempo, passou a caneta colocando na rua o responsável por tamanha afronta.
Em 1991, mais de um século depois do caso, Celso Magalhães seria consagrado como patrono do Ministério Público do Maranhão.
O parquet conseguiu em 2009 que o governo do estado repassasse a guarda dos autos, que estavam no arquivo público desde 1976.
Os documentos originais foram digitalizados e colocados à disposição do público nas redes sociais. A iniciativa do MPMA foi finalista do Prêmio do Conselho Nacional do Ministério Público em 2021, contemplada com o Selo Respeito e Diversidade.
As apresentações, prefácios e artigos que acompanham a primeira e segunda edições dos autos em livro, apesar de ressaltarem a importância do acesso de pesquisadores e da sociedade em geral aos documentos, ignoram por completo o tempo que estiveram na casa de Sarney e, por consequência, o dano provocado à história.
Enxergam tão somente os 35 anos que os autos passaram “trancados em um arquivo de aço do Museu Histórico de Artístico do Maranhão”.

Vaidade anticiência
A cegueira saramaguiana também contaminou a Ciência; embora não tenha prejudicado por completo a excelente pesquisa que sustenta a tese de doutorado em História, Celso Magalhães e a Justiça Infame apresentada em 2017 por Yuri Michael Pereira à Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
O pesquisador faz meia-boca (pág.61) ao citar que o episódio de salvamento dos autos foi confirmado por Sarney. “Nesse sentido, exaltar a figura de Celso passa também pela autovalorização da imagem de Sarney como intelectual e mesmo como visionário, já que, ainda bastante jovem, teria percebido a relevância histórica de se preservar os ”autos-crime da baronesa de Grajaú”, escreve.
Aliás, em nota de rodapé ele tem um acesso de vaidade desnecessário e sem cabimento em um trabalho científico.
“A informação foi confirmada por José Sarney a partir da provocação deste pesquisador”, anota.
Questionar sobre quais os motivos de guardar os autos em casa, por tanto tempo , necas de pitibiriba.
E o que é pior, Yuri Pereira completa o rodapé revelando que o contato com Sarney foi feito através do presidente da Academia Maranhense de Letras, Benedito Buzar, amigo pessoal do ex-presidente, “que com ele conversou pessoalmente sobre a presente pesquisa, sugerindo-o que escrevesse sobre o tema”.
A manifestação de Sarney, continua Pereira, “confirmando a versão de que teria ele salvo o processo judicial de sua destruição, veio através de dois artigos em O Estado do Maranhão, intitulados Celso Magalhães e o processo-crime da baronesa (Sarney,2016ª.p. 1) e O processo da baronesa de Grajaú (SARNEY,2016bp. 1)”.

Sociedade contaminada
Só conseguimos localizar o segundo artigo, republicado no blog do Gilberto Leda, em 30 de março de 2014. Mas já é o suficiente para dimensionar o ego e o despropósito da leitura enviesada dos fatos. Suas próprias palavras entregam o jogo.
Ao contar sobre o “processo e sua sobrevida, capaz de dar aos historiadores a oportunidade de manuseá-lo e a salvo”, o velho morubixaba chega ao ponto de afirmar que considerava um crime, o descarte de documentos históricos. Lembra que tinha 19 anos e que a época o Tribunal de Justiça, onde trabalhava, funcionava na Rua Afonso Pena. E que com a construção da nova sede do TJ na praça Pedro II, o então presidente do tribunal, desembargador Joaquim Santos, para facilitar a mudança, determinou que os processos velhos, os anteriores a 30 anos, fossem jogados fora.
“Fui designado para ajudar. Numa das carroças [havia poucos caminhões] eu, já intelectual [aos 19 anos!] e jornalista […] comecei a tentar salvar alguns daqueles papéis que eu julgava um crime irem terminar na maré. Encontrei o processo da Baronesa. Eu conhecia o caso. Exultei. Salvei outros processos que doei a Arnaldo Ferreira. Não sei se constam de sua grande biblioteca, hoje pertencente ao Senac”, pontua.

Sarney testemunha o que considera um crime, se cala e ainda leva consigo o objeto do crime!
E ainda por cima “doa” parte desse acervo!
Ele explica que ficou com os autos da baronesa, “na esperança de escrever um romance com aquele repositório de informações”!!!
Sarney nasceu em 24 de abril de 1930. Se ele tinha 19 anos, o ato ‘heroico’ de Sarney aconteceu entre março e abril de 1949.
Na sua biografia autorizada, escrita pela jornalista Regina Echeverria, não há qualquer alusão ao episódio.
Uma das poucas referências que Echeverria faz na biografia à passagem de Sarney pelo TJ-MA, é que um mês após o início (março/49) do trabalho como oficial do judiciário ele foi (abril/49) colocado à disposição da Biblioteca Pública. De onde só retornou à “secretaria do Tribunal de Justiça em 53 na presidência do desembargador Trayahú Rodrigues”.

A biógrafa fez questão de grafar o nome do presidente do Tribunal à época. Mas ignora que neste mesmo ano, Sarney Costa, o pai do biografado, assumiu o cargo de desembargador no TJ.
Com a palavra o atual presidente do TJ/MA Lourival Serejo, que na última quinta-feira, 17, em entrevista à TV Mirante, ressaltou que o acervo jurídico de documentos históricos colocados à disposição do público pelo museu no tribunal, não só resguarda parte fundamental da evolução da cultura e da sociedade maranhense, como, também, revela a evolução da Corte, considerada a terceira mais longeva do Brasil, em atuação desde o século XIX.
“Este museu tem uma importância muito grande para a história do Maranhão […] da evolução da sociedade maranhense, dos litígios; dos inventários; dos testamentos […] isso representa uma conquista muito grande de conservação daquilo que precisa ser conservado”, disse o presidente.
Não há o que discutir sobre o fim do domínio da família Sarney no Maranhão.
No entanto, restou uma sociedade contaminada…
Assista a entrevista do presidente do TJ Lourival Serejo
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