O último guaraná Jesus do deserto: meu lance com Chico Maranhão. Por Fernando Abreu
Que Coca-cola que nada. Caí em cima desse “Lembranças, lenços lances de agora” (Palavra Acesa, 2022) como se ele fosse o último Guaraná Jesus do deserto. Um deserto que comecei a irrigar em 1979 quando cheguei de Grajaú para estudar em São Luís, onde havia nascido e onde de vez em quando passava férias. Tinha eu catorze anos, como diz a canção, me considerava um poeta e queria estudar piano, o que de fato acabei fazendo. Nesse mesmo ano me tornei aluno da Escola de Música do Estado do Maranhão (EMEM), que funcionava então na mesma rua onde fiquei morando por mais de 20 anos, a rua da Saavedra. Lá pela EMEM conheci um índio preto simpático e falante chamado Pixixita. E sabe quem morava (ou veio morar logo em seguida) na mesma rua? Sim, o Chico Maranhão.
Além da greve da meia-passagem, que me incendiou a imaginação de leitor precoce de livros sobre a revolução cubana, o ano foi marcado também pelo meu primeiro show do que seria a moderna música maranhense. Da plateia do pequeno auditório da Escola Modelo, vi um Josias Sobrinho em estado selvagem, com uma cabeleira em chamas, um Zézé da Flauta com jeito de mamulengo e um cego tocando rabeca. Me parece que João Madson tava lá…ou o show era dele e esses caras faziam parte, não sei mais. A precariedade era completa, não se entendia patavina das letras, mas pra mim era Woodstock. Me lembro disso como num sonho, mas juro que aconteceu. Tinha eu catorze anos de idade…
No ano seguinte foi o festival da Globo, e foi Diana Pequeno cantando “Diverdade”, e foi Décio Marques cantando “Peão na Amarração”, com aquele ar de mártir. E foi eu me dar conta de que morava um cara genial na minha rua. Incapaz de esboçar um gesto de aproximação, eu apenas via ele passar, gigante (me parecia), sério quase triste, mas altivo, sempre olhando pra frente do alto, como o “che” na icônica foto de Alberto “Korda”. Um dia botei pilha em minha irmã pra ir bater na porta dele com um caderno na mão. Voltou com a frase: “Para Luciene, um autógrafo na porta de casa. Chico Maranhão”. Ficamos eufóricos.
Li Chico no jornal falando sobre a canção e de seu processo criativo, de como “Diverdade” tinha surgido pra ele na praça de Santo Antônio como uma epifania (certamente não usou essa expressão), minha sede adolescente recriando a cena da forma mais colorida e grandiosa. Lembro também de ter ouvido “Lances de Agora” no rádio. Mais tarde eu assistiria a um show inteirinho do meu ídolo no Arthur Azevedo, do qual me lembro dele cantando “Ponta D´Areia” e de seu Antônio Vieira tocando percussão. Eu nem piscava.
Lembro também de uma sexta-feira santa ou algo assim, sei que passou uma procissão grande, quando fui comprar alguma coisa (ainda não era birita) no bar de Dona Galeana e ele entrou. Não era da turma que passava seus dias por lá: Sérgio Cão (um santo franciscano sempre sorrindo, dizem que era craque de bola), Dárcio, Julio Pedro e Zé do Couto (meu futuro amigo querido), entre outros. Ele apenas entrou e saiu, eu acho que nos cruzamos. Lembro da bermuda jeans esfiapada que ele usava e de como sua presença mudou o ar ao nosso redor, tudo ficou mais denso. Ali estava um poeta. Ou dois.
Nunca mais parei de admirar Chico Maranhão, assim como Josias e Sérgio Habibe, que mais tarde encontraria nos corredores da UFMA para onde ele tinha voltado depois de séculos. Terminamos nos formando juntos em jornalismo, o que foi uma grande alegria para mim. Uma das pessoas mais afáveis e carinhosas que jamais conheci, grande Sérgio Habibe.
“Lances de Agora”, fui conhecendo aos poucos, era mesmo um disco lendário, nunca imaginei que um dia poderia ouvi-lo completo em um aparelho que posso guardar no bolso. Sacava melhor o “Fonte Nova”, que meus velhos compraram logo que foi lançado, sei cantar quase todas as músicas, incluindo “Viver”, “Os Fiéis de São José” e “A Vida de Seu Raimundo”. Chico era sobrinho de Dona Itacy Viveiros, grande amiga de Dona Maria Abreu, minha mãe, o que humanizava um pouco a lenda, sem tirar um milésimo de sua força em meu imaginário.
Mas a legenda do disco irrepetível, gravado na sacristia da Igreja do Desterro me acompanha, ilumina e acalenta até hoje. Acho que acerta em cheio quem diz que é um disco MÁGICO, como alguns poemas são mágicos, como algumas canções também são. Aquilo é magia e pronto. Não me falem de precariedades técnicas, incompatibilidades radiofônicas, nada disso se aplica a esse disco, sobre o qual eu escreveria muito mais, mas alguém já fez isso, e essa é a razão dessas linhas.
Agradecer demais ao meu querido amigo Celso Borges é o que posso fazer, embora isso seja insuficiente, pelo que ele nos dá com esse livro, onde o fôlego do jornalista rigoroso entra em acordo amoroso com o coração do poeta, sem disputa de espaço. Ao contrário, para construir um espaço novo, um livro híbrido, lírico, épico, apaixonado. Celso Borges está inteiro nesse livro, cuja escrita acompanhei pelo menos uma vez bem de perto, quando contei ao autor uma historieta envolvendo a mim e a Chico que ele fez questão de incluir.
Uma das sacadas mais fantásticas desse “Lembrança, lenços, lances…” é a aproximação entre Chico Maranhão e Bob Dylan em um ponto que acho totalmente legítimo e verdadeiro. Nunca tinha pensado nisso, mas quando Celso sacou a pegada narrativa de muitas canções, seu fôlego estendido, seus personagens marginais, além do canto-falado (bem perceptível em “A Vida de Seu Raimundo, entre tantas) vi que tinha tudo a ver. Para mim, um chicófilo/dynalófilo, era o melhor dos mundos.
Já por minha conta, arrisco até dizer que escapou a CB uma ocasião onde o próprio verbo dos dois se mesclam, justamente na canção que nomeia o disco. Veja: vá, se mande, junte tudo que você puder levar/tudo que parece seu é bom que agarre já (It’s All over Now Baby Blue/ Negro Amor, na versão de Péricles Cavalcante e Caetano Veloso). E agora: Vá e leva a vida/sem dizer que leva a minha vida sem querer/vá e leve tudo que puderes/faca, coração/colheres/separa teu prazer. Viagem minha? Claro, mas pra que serve a arte? Pois eu sustento que as duas tem o mesmo espírito, são almas gêmeas.
Quero encerrar essas linhas que nunca terminam desejando a esse livro a trajetória que merece. Que seja lido, relido e translido e curtido, aqui e fora da ilha, porque a riqueza de vida que dele transborda é agua para muitas sedes. Não é memória nostálgica. É lembrar para espantar a pobreza, o tédio e o asco que rondam nossos dias. São lances de agora, já!