A TRÁGICA MISTURA DE CINEMA E VERDADE
Por Flávio Bezerra de Farias (Professor aposentado da UFMA)
Com a realização do filme “Cidadão Kane” (1941) sobre as manipulações de um magnata da mídia estadunidense, o jovem diretor Orson Welles ficou famoso. Portanto, foi escolhido por Hollywood para fazer um filme apologético sobre o carnaval carioca, para agradar aos fascistas governantes do Brasil, que poderiam se aliar às potências do Eixo. Foi a gênese da guerra cultural própria à guerra fria, em que o país tropical se fazia representar por Zé Carioca e militar subsumido ao comando estrangeiro (não é difícil encontrar as suas caricaturas bárbaras e tenebrosas atuais).
Surpreendentemente, o rebelde Welles usou os recursos da produção daquele filme encomendado para financiar um outro filme, “Tudo isto é verdade” (1942) sobre uma questão tipicamente brasileira, a saber: a epopeia de um jangadeiro, que navegou do Ceará ao Rio de Janeiro para reivindicar direitos trabalhistas. A trágica mistura de cinema e vida real foi tamanha que, ao representar o seu próprio papel, o pescador cearense morreu em acidente de filmagem. Os rolos de filmagem ficaram esquecidos por décadas em Hollywood sujeitos à crítica destrutiva do mofo.
Além do mais, em meio a um falso debate sobre conquista operária ou concessão de Vargas, o que se obteve como direito trabalhista foi uma cópia da legislação fascista de Mussolini, marcada por não tolerar a luta de classe entre patrões e assalariados. Em última instância, o pouco de direito do trabalhador, que foi conquistado na CLT, em 1943, foi retirado recentemente pela legislação própria ao golpe de 2016.
Desde então, o proletariado brasileiro tem um pesadelo neofascista, do qual poderia até acordar pela via eleitoral. Porém, como evidenciou Welles no filme kafkiano “O processo” (1962), a própria experiência capitalista é um pesadelo acordado. Posto que, sobretudo em momento de crise, o capitalismo tende ao fascismo, não se deve enfrentar um isolando-o do outro. Do mesmo modo que a exploração econômica, a dominação política e a humilhação social formam um todo, que se exprime como um silogismo (universidade, particularidade e singularidade). Portanto, no processo eleitoral, é equivocada a separação burocrática entre pautas econômicas, políticas, sociais (inclusive culturais).
O gênio do cinema estadunidense, especialista do tema ficção/realidade, precisamente no filme “Verdades e mentiras” (1973) mostrou que só existem os falsários porque existem os experts. Assim, a senadora eleita por Brasília, pastora bolsonarista, especialista em manipulação da fé cristã, diante de meninos e meninas, mentiu sobre crianças que tiveram os dentes arrancados para sexo oral e o estômago preparado para sexo anal. Na sua “guerra cultural” vale tudo, inclusive o desrespeito à constituição e à legislação eleitoral.
No filme “Teorema” (1968), Pier Paolo Pasolini se inspira em Jesus, Marx, Freud e Wilde, para sublinhar as virtudes emancipatórias da verdade, no contexto da condição humana de uma família burguesa, em que um cara angelical e demoníaco faz barba e cabelo no sexo e na mente de seus membros.
Finalmente, no filme “Salò, ou 120 dias de Sodoma” (1975), Pasolini exibiu fascistas recorrendo a milicianos para aprisionar meninos e meninas, submetendo-os a jornadas de violências como escravos sexuais, obrigando-os a praticar os mais diferentes tipos de orgias, torturando-os física e mentalmente. Finíssimo crítico do fascismo, aqui, ali e acolá, o cineasta italiano já dissera em verso: “Ó Brasil, minha pátria desgraçada…” Antes de ser assassinado em 1975, em “Versos finos como traços de chuva”, Pasolini nos alertou para algo que nos concerne sobremaneira:
“É preciso condenar
severamente quem
crê nos bons sentimentos
e na inocência.
É preciso condenar
com igual severidade quem
ama o subproletariado
sem consciência de classe.
É preciso condenar
com a máxima severidade
quem ouve em si e expressa
sentimentos obscuros e escandalosos…”
(Pier Paolo Pasolini).
O diretor Rogério Sganzerla reconstitui (filme de 1985) a visita ao Brasil do cineasta americano Orson Welles para filmar o documentário It’s All True (Tudo é Verdade). Movido por idealismo cívico e na trilha da chamada política da boa vizinhança, implantada pelo presidente norte-americano Franklin Roosevelt, Welles apaixona-se pelas coisas brasileiras.