O massacre dos libertos: Um livro de crítica e luta. Por Flávio Reis

- Por Flávio Reis

O livro O Massacre dos Libertos, de Matheus Gato, lançado em 2020 e um dos finalistas do Prêmio Jabuti no ano passado na categoria ciências sociais, é de fato um trabalho brilhante.
Num texto objetivo e fluido, o autor promove o encontro frutífero entre ciência social, historiografia e literatura, para descortinar um episódio marcante, mas encoberto nas brumas das disputas de memória (que são disputas de poder), ocorrido no coração da cidade de São Luís, nas cercanias do Largo do Carmo, apenas dois dias após o golpe que instaurou a república no Brasil. O massacre de 17 de novembro, conflito envolvendo libertos e outros negros, “cidadãos do treze de maio”, em investida contra o jornal republicano O Globo, dirigido pelo republicano histórico Paula Duarte, alvejados pelos soldados chamados para “resguardar a ordem”, é colocado como episódio emblemático dos conflitos raciais que marcaram a conjuntura da instauração da República, prontamente descaracterizados pelos discursos oficiais.
Província com grande contingente de população negra, o Maranhão, em especial sua capital, São Luís, viveu momentos de tensão e indefinição no alvorecer da República, quando o medo da reescravização foi utilizado para atacar o novo regime, em meio a boatos desencontrados e uma paralisia da administração provincial. A teia dos acontecimentos dos dias 16 e 17 é tecida no cruzamento das versões expressas em depoimentos, artigos de jornal, relatos memorialísticos e textos literários. Ao sair do casulo da “área de conhecimento”, que assola a grande maioria dos trabalhos acadêmicos, Matheus consegue um texto vibrante, com tensão crescente, provocando quase um efeito cinematográfico, pois o massacre de que trata vai nos chegando aos poucos, até explodir no capítulo final, no (des)encontro das visões defendidas por historiadores, memorialistas e literatos.
O quadro geral é o processo de racialização que levou a uma cidadania fraturada, que marcaria toda a história republicana e cujos efeitos continuam expostos cotidianamente na vida pública brasileira. Matheus nos leva diretamente aos sentimentos de indefinição que perpassavam a população de recém libertos, vivenciando a experiência da subordinação racial agora através da clivagem de direitos apresentados como universais e das disputas em torno da legitimidade da violência física contra os que se “recusavam” ao trabalho. A própria ideia de “massacre” para descrever os acontecimentos do dia 17 de novembro seria descaracterizada pela historiografia tradicional, mas foi resguardada pela memória dos libertos e outros registros, pois além das mortes, houve feridos, alguns tornados mutilados. A República nascia, assim, sob o signo da violência e do racismo.

A Abolição, da forma como foi efetuada, criou o “liberto” como um problema social, sendo acompanhada do processo de racialização, que manteve firme a hierarquia social, levando à configuração de cidadãos de “segunda categoria”, cujos direitos são incertos, geralmente determinados ao bel prazer das autoridades policiais. O Maranhão, província periférica, viveu ao final do Império um processo agudo de crise da grande lavoura de exportação e uma crise política de renovação interna da oligarquia. Em O Massacre dos Libertos, esse cenário é resgatado com sensibilidade numa conjuntura crucial, entre o decreto da Abolição e a Proclamação da República, atento à construção dos silêncios que acompanham a memória oficial.
No fundo, havia a percepção, por parte dos negros e da arraia-miúda da cidade, de que aquela república garantia a “liberdade dos brancos”, o que se tentou atenuar com o simbolismo das cores na bandeira do Maranhão, representativas das “três raças” formadoras da nacionalidade. Com ironia cortante, Matheus não deixa de assinalar que são quatro listras horizontais brancas, três vermelhas e duas pretas. O passado de hierarquização e sujeição continuaria muito vivo e o Maranhão, estado de expressiva população negra, aprofundaria a negação de seu povo, através do recrudescimento da imagem da capital como a Atenas Brasileira e, vale acrescentar, da construção do mito da fundação francesa de São Luís. Simbologias que se tornaram o sustentáculo da identidade da cidade até fins do século passado. A incorporação posterior dos símbolos da cultura popular, do tambor de crioula e do bumba meu boi, seria feita de maneira controlada e espetacularizada, sem maiores rupturas, preservando aquelas fantasmagorias.
Fica aqui uma saudação ao Matheus pelo texto instigante, fruto de uma pesquisa enxuta, que consegue através de um acontecimento, analisado nos termos de Marshall Sahlins como evento, mostrar os aspectos estruturais da dinâmica social. Escrito com objetividade, mas sem perder a indignação, é um livro de crítica contundente e de luta engajada, coisas que raramente andam juntas por estas bandas.
- Flávio Reis é professor sa UFMA
Muito bom texto sobre o excelente livro O Massacre dos Libertos, de Matheus Gato.