Academia se finge de morta, como se morta já não estivesse, ao ignorar resgate de massacre de negros
A indiferença da Academia Maranhense de Letras e das universidades públicas e privadas ao regaste de um massacre de negros, ocorrido em São Luís ,dia 17 de novembro de 1889, durante protesto contra a proclamação da República, é um atestado de péssima qualidade de produção acadêmica ou um sintoma de egocentrismo combinado com desfaçatez. O resgate é obra do sociólogo Matheus Gato em O massacre dos libertos: raça e República no Brasil (1888-1889).
Considerada pela Câmara Brasileira do Livro, uma das cinco melhores publicações na área de ciências sociais do ano, o livro de Matheus nos permite perceber como o cancelamento do massacre de 17 de novembro alcançou o século XXI, em um processo de retroalimentação contínuo ao longo de 132 anos. Apesar de documentos, matérias de jornais e relatórios testemunhais, inclusive Josué Montello, em Os Tambores de São Luís, confirmarem que a fuzilaria do exército deflagrada sobre a multidão deixou vários mortos e feridos.
Prontuário da Santa Casa de ‘Mizericordia’ registrou que neste dia deram entrada no hospital 11 pessoas negras com ferimento à bala, das quais 4 tiveram pernas ou braços amputados e outros 4 vieram a óbito.
A reconstrução de época e a maneira com que Matheus Gato tenciona suas fontes atendem à análise sociológica e histórica do racismo a que o estudo se propõe. Sem qualquer pretensão de fazer um exame crítico ou de demonstrar concordância ou não à tese apresentada, vamos tão somente apontar o que nos causa perplexidade enquanto leitor, talvez um pouco mais atento.
E o faço não por vontade própria ou decisão profissional enquanto jornalista. Mas por instinto de sobrevivência. O compadrio, essa espécie de escambo de gentilezas, presente na política, nas artes, nas diversas áreas da expressão humana, motivo do atraso e da pobreza do Maranhão, um dia ainda te engole.
Matheus não registra ter encontrado documento raro, escondido, enterrado ou perdido em meio ao abandono do patrimônio histórico e cultural de São Luís; para que se possa considerar o morticínio uma descoberta. Tampouco uma releitura da história na perspectiva dos negros.
A propósito de tirar o seu da reta, sopesar a morte de pessoas como uma questão subjetiva, é colocar a corda no pescoço.
Pobre, porém francesa
O que é um massacre de negros diante da ameaça de São Luís não ter sido fundada pelos franceses ? Bastou um livro jogar por terra um mito que alimenta a altivez postiça do ludovicense, para que meio mundo viesse abaixo.
Jornalistas e acadêmicos de pequenos, grandes e falsos costados, formaram uma corrente pra frente para combater publicamente os estudos da professora Maria de Lourdes Lauande Lacroix, reunidos no livro A Fundação Francesa de São Luís e seus mitos.
No entanto, independente da inexistência de qualquer menção aos franceses como fundadores na historiografia maranhense dos séculos XVII, XVIII e XIX, conforme aponta Lacroix, o mito se sobrepôs à História.
Além do intenso debate público envolvendo jornalistas e acadêmicos, através de artigos publicados na imprensa entre 2001 e 2005 (Leia aqui o interessante artigo de Jhonatan Uelson Pereira Sousa, publicado em 2007 no periódico Outros Tempos, do curso de História da UEMA), a controversa ainda foi motivo de ciclo de estudos promovido pela UFMA em 2012, quando dos 400 anos da capital maranhense.
Em 2017, no aniversário de 405 anos, o historiador Antônio Noberto, defendeu a fundação e lamentou o fardo da cidade também não ter sido colonizada pelos franceses,
Segundo o professor do departamento de História da UFMA, Flávio Reis, a historiografia maranhense se caracteriza por trabalhos laudatórios e repetitivos, que se faz através de uma simples repetição canônica de autores, povoando a história de sombras, personagens, fatos e processos irreais.
(Para melhor compreensão desse período leia aqui o interessante trabalho de Jhonatan Uelson Pereira Sousa, publicado em 2007 no periódico Outros Tempos, editado pelo curso de História da UEMA)
A indiferença da Academia Maranhense de Letras é muito mais pelos nomes de confrades consagrados que a pesquisa de Gato revela, do que por não saber onde esconder a cabeça. Não é do feitio das academias dar satisfações aos pobres mortais. O que não significa que não tenham que fazê-lo, sob o risco de uma autofagia delirante.
Afinal, como explicar – sem apelar para a ultrapassada mentira mil vezes repetida de Goebbels – que um massacre de negros, considerado um marco na formação de uma cidadania negra no Brasil, ficar cancelado por 132 anos?
Mateus Gato diz que parte desse silêncio “se deve ao sucesso dos republicanos maranhenses em subtrair o conflito da memória histórica e política brasileira”.
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O massacre de 17 de novembro: Sobre raça e a república no Brasil
O caso do poeta Sousândrade, autor de O Inferno de Wall Street, neste sentido, é emblemático. Primeiro, distribui suas terras entre os libertos, quatro dias após o massacre. Pouco mais de um mês depois, passa o recibo aos cidadãos maranhenses, aconselhando-os a dar o episódio por esquecido:
S
e algumas horas perturbadas demorou-se o dia do Maranhão, não importa – aí estamos todos rejuvenescentes à luz divinal feita ao conjunto de todas as virtudes, à alegria da ordem, à alegria do progresso, à alegria do trabalho, à alegria da honra, à alegria do direito e à benção das leis” (F.G. Williams; J. Moraes (orgs.),Poesia e Prosa Reunidas de Souzândrade, p.514)
Tantas foram as alegrias, as luzes divinais e as mortes de negros que ele define como horas perturbadas, que em 1898 nos dez anos do regime republicano, o poeta se viu obrigado a vender as pedras dos muros de sua própria casa para ter o que comer, conforme registra um outro ensaio de Matheus, Tempo e melancolia: república, modernidade e cidadania negra nos contos de Astolfo Marques (1876-1918).
As desilusões de Sousândrade estão expressas em duas estrofes amargas do longo poema Harpas de Ouro, dedicado ao décimo aniversário da límpida República sem as manchas de sangue negro, que o poeta ajudou a cancelar.
E eis minha casa, miniatura/ República: o pão…me dar/ Pedras a Vitória, e doçura…/ Nessum maggior dolore, a olhar/ Sorrindo à esperança, que ventura/ Quão docemente a de chegar!
Armas com que fiz a república/ Pontas voltaram contra mim/ Antes deixasse a raça lúdrica/ Em seu hediondo chifrim (Sousândrade, 2003,pp.440,445).
O processo de desapreço à vida do negro iniciado pelo poeta, teve no duplamente imortal (ABL e AML) Viriato Correia, a sua face mais horrenda. Em Pela Redentora, crônica publicada em 1927, ele nega o massacre, não pelo massacre em si, mas pelo viés de quem foi massacrado.
Na crônica, que integra a antologia O Brasil dos Meus Avós, Correia defende o caráter pacífico da passagem da Monarquia à República, sob a singela argumentação de que “sangue anônimo, sem importância política, sem vulto histórico, derramou-se algum naqueles primeiros dias de queda do Império”.
Pela Redentora inaugura o processo de retroalimentação cega dos fatos. Viriato Correia não só acentua o cálculo sousandrino do valor do sangue, de acordo com o corpo por onde ele corre, como descreve inteiramente o 17 de novembro com base em relatório escrito pelo alferes Antonio Raimundo Bello, militar responsável pela ordem de fuzilamento aos manifestantes.
O livro por trás do resgate de massacre de negros no MA
Em 17 de novembro de 1889, ocorreu no Maranhão, na cidade de São Luís, um grande protesto popular, majoritariamente de negros, contra o golpe militar que dois dias antes estabelecera a República no Brasil.
Os manifestantes acreditavam que o objetivo era destituí-los dos direitos conquistados com a Abolição, cerca de um ano e meio antes, e reescravizar a gente de cor. Quando tentaram invadir e depredar um jornal republicano, uma tropa destacada para proteger o edifício realizou uma descarga de fuzil e, de acordo com números oficiais, matou quatro pessoas e deixou inúmeros feridos.
O episódio é conhecido como o Massacre de 17 de Novembro e, junto com outros incidentes envolvendo violência e racismo ― como a destruição do pelourinho de São Luís e as prisões e torturas que seguiram o protesto ―, é descrito em “A nova aurora”, novela histórica publicada em 1913. Uma das imagens mais recorrentes acerca da instauração do regime republicano é a do povo bestializado, apático, sem tomar posição diante do golpe de Estado que encerrara o longo reinado de d. Pedro II.
Que alternativas e limites políticos e culturais uma sociedade egressa da escravidão poderia oferecer para realizar as promessas de uma cidadania sem distinção de cor, linhagem e origem social?
Astolfo Marques, um escritor negro que pensou o país a partir do velho norte agrário, lidou com esses impasses fazendo da escrita um espaço criativo em que alia pesquisa documental, relatos orais, ficção e lembranças pessoais, construindo, em “A nova aurora”, uma narrativa aberta a múltiplas vozes, que nos convida a questionar os muitos apagamentos de nossa memória republicana.
A linguagem do alferes, segundo Matheus, “conjuga os preconceitos sobre o povo ao imaginário da insurreição, descrevendo os manifestantes como amotinados, uma multidão, grupos armados e revoltosos que teriam abalado a ordem e a tranquilidade de São Luís, caso tivessem sucesso no ataque aos republicanos.
Se Viriato Correia foi horrendo, a contribuição de Mário Meireles à cadeia alimentar negacionista é a mais nociva. A conjugação do verbo ser no presente, não é à toa.
O seu História do Maranhão é uma obra aclamada, prestigiada com duas edições ampliadas, que é, como bem diz Matheus Gato, “uma citação obrigatória nos estudos historiográficos sobre o estado”. O que Meireles diz, propaga-se pelas cabeças de vento, sem qualquer questionamento.
No famoso livro, lançado na década de 50, ele descreve o conflito como um fato sem maior gravidade e que a interferência da polícia apenas dispersou os manifestantes.
De acordo com Meireles, a ideia de massacre e o boato dos fuzilamentos eram exageros da mente popular. Uma fofoca que só serviu para criar um ambiente de hostilidade contra a República.
Onde já se viu uma coisa dessa? Mais de 50 anos depois, com relatórios até de quem comandou o fuzilamento, gente presa, prontuário hospitalar, um sujeito que se diz historiador publicar em livro que um massacre com 4 negros assassinados e 4 amputados é fofoca ?!
Constatamos que nas nove páginas do capítulo (25o) dedicado à adesão do Maranhão à Republica, os primeiros governos provisórios e a Constituição Estadual do MA, a palavra negro não aparece nenhuma vez. Sequer nos dois pequenos parágrafos sobre ambiente na capital com a notícia do golpe de Deodoro da Fonseca.
A única anormalidade ocorrida foi uma manifestação de escravos, recentemente libertos, contra Paula Duarte, o único republicano no novo governo, e isso porque se dizia que o novo regime vinha para tornar sem efeito a Lei Áurea. Indo os manifestantes contra a redação de O Globo, seu jornal, a polícia interferiu imediatamente, dispersando-os; isto na véspera da adesão. Mas a circunstância de, na boca do povo, ter ocorrido tal incidente, aliás sem maior gravidade, como se houvera sido um massacre – os fuzilamentos do dia 17, dizia-se – concorreu para um ambiente de frieza, indiferença e desconfiança, se não hostilidade, contra a República. ( Mário Meireles, História do Maranhão, p.269).
Um outro prócere citado em O massacre dos libertos, que também nos salta os olhos, é o desembargador Milson Coutinho. Em Subsídios para a História do Maranhão, publicado em 1978, o ex-presidente do TJ não nega as mortes e os feridos, mas constrói uma narrativa absurda e prontamente enfrentada por Gato.
A maior delas é a invenção de que havia algum ex-barão do Império por trás dos protestos, associando essa possibilidade ao fato de nenhum culpado ter sido encontrado. No entanto, o quarto capítulo do livro de Matheus, registra a prisão do político conservador João Henrique Vieira da Silva. Integrante da situação governista destronada pelo golpe. Ele foi considerado culpado e preso por crime de contrarrevolução.
Entrevista/Matheus Gato: Literatura X Negacionistas
Trabalho acadêmico realizado com incomum primazia no uso de ferramentas literárias para reconstruir um acontecimento subtraído da “memória histórica e política brasileira”, Matheus resgata a um só tempo o massacre e o autor do relato sobre o massacre, o escritor negro e também esquecido, Astolfo Marques. Em companhia de Antônio Lobo, Marques é um dos fundadores da casa que hoje abriga os imortais da hora.
O massacre dos libertos teve origem com a leitura de A Nova Aurora, novela lançada em 1913, que reconstrói em cores vivas o massacre de 17 de novembro. Matheus Gato tem dedicado especial atenção ao estudo da obra de Astolfo Marques.
O escritor maranhense foi objeto de sua dissertação de mestrado (Negro, Porém Republicano – Investigações sobre a trajetória de Astolfo Marques) e tese de doutorado (Racismo e Decadência – Sociedade, Cultura e Intelectuais do Maranhão), defendidas na USP em 2010 e 2015, respectivamente.
A relevância do trabalho de Gato é o seu comportamento perante o objeto pesquisado. Organizou a coletânea O 13 de Maio, com contos dispersos e desconhecidos de Marques, lançada pela Editora Fósforo, e foi o responsável pela reedição de A Nova Aurora, pela editora Chão.
Lançados em maio e novembro deste ano, os livros tiveram forte repercussão nacional e completo desprezo dos sábios da taba Timbira. O jornalista Janio de Freitas (Folha) saudou a coletânea publicada na estreia da Ed. Fósforo como “literatura e história combinadas na estirpe machadiana do esquecido maranhense Astolfo Marques”.
Academia Maranhense de Letras fingiu-se de morta, como se morta já não estivesse. Talvez tenha se sentido ofendida.
O site oficial da entidade dos imortais dedica 7 linhas ao escritor, sem nenhuma referência à qualidade de sua obra. Ressalta, além do nasceu/morreu, foi isso/foi aquilo, que “de origem humilde,[Astolfo Marques] lutou bravamente nos começos para galgar uma posição de destaque na vida social e literária de sua terra, conseguindo-o a golpes de esforço estrênuo e aplicação indormida”.
O reconhecimento literário de Astolfo Marques deveria ser motivo de orgulho. Muito mais aos acadêmicos. Os elogios dirigidos ao escritor refletem e revigoram a imagem da ACM ameaçada, inclusive no Maranhão, de desaparecer por omissão e insignificância.
A valorização, no entanto, expõe a mediocridade da Casa. Vídeo sobre Astolfo Marques da série Os Imortais da Academia Maranhense de Letras, parceria da ACM, Fundação Nagib Haickel e Assembleia Legislativa do Maranhão, chega a ser um atentado ao pudor. Vinhetinha, edição, tudo no lugar. O texto narrativo e os depoimentos são de uma generalidade vergonhosa, ainda mais em se tratando de uma produção com o selo da Academia Maranhense de Letras.
Seria mais honesto relatar que há poucas informações disponíveis sobre o autor. Ou melhor ainda, suar um pouco a camisa e pesquisar os jornais da época no site da Biblioteca Nacional. Mais fácil ainda, dava um google. A produção é de 2013, a dissertação de mestrado de Matheus Gato é de 2010. A Biblioteca Digital da USP disponibiliza teses e dissertações.
E os depoimentos? Esses, então, nem se fala. A sensação que se tem é que não leram nada de Astolfo Marques, pois os comentários da pesquisadora Mundinha Araújo e do jornalista Manoel dos Santos Neto são genéricos, banais, até mesmo incondizentes com o que os credenciou a participar do documentário.
O enrrolêchon se agrava e toma outra proporção quando o jornalista, ao comentar o romance A Nova Aurora, não faz nenhuma referência ao massacre de 17 de novembro de 1889. E no reducionismo com que ambos consideram Astolfo Marques um autor moderado, que não contestava abertamente a sociedade.
O que será que eles pensam de Machado de Assis, a quem a ironia do maranhense está sendo comparada?
O vídeo enrrolêchion promovido pela AML sobre Astolfo Marques
Vejamos A comunhão de Romualdo, conto sobre um preto escravizado, que nunca se confessara uma vez na vida. No entanto, sabia que naquele domingo de páscoa de 1888, não iria consegui escapar da confissão. Foi o próprio fazendeiro quem garantiu ao padre que Romualdo iria ao confessionário com direito ao jejum obrigatório da comunhão.
Com pavor de “sofrer de fome com o jejum, privação obrigatória na fazenda pela Páscoa”, Romualdo não pensou duas vezes e na madrugada foi até o poleiro e, sem que ninguém o visse, matou e comeu um dos galos mais belos do seu senhor. Na manhã seguinte estava armada a confusão entre os escravos.
Sacrilégio! Bradaram. Comer antes de tomar o senhor.
Mas o Romualdo explicou-se, procurando mostrar que tinha a razão ao seu lado. Ouvira falar que um galo anunciara o nascimento de Cristo, e fora por isso que achando que o seu estômago, que nunca recebera o corpo do Senhor, estranharia a visita, se ela não fosse precedida da dum galo anunciante, por isso tomara tal resolução.
E ainda se saiu com esta:
Então que vocês queriam ? Eu havia de botar galo pra dentro por cima do Nosso Senhor?! Deus Nosso Senhor é que devia ir por cima do galo!
E aí, será que além da esperteza, da chacota, o conto não bate de frente com a Igreja? O dia da confissão, podia ser qualquer um, mas Astolfo o situa em um domingo de páscoa, da ressureição, do almoço em família. Ou seja, a recusa do escravo Romualdo em se confessar, é a resistência do negro à religião católica.
E o galo? É uma questão de valor. Se o fazendeiro estava obrigando-o a aceitar goela abaixo uma religião, ele não só comeu, ele matou e comeu, não uma galinha, mas um dos galos mais belos do seu senhor!
Observem que o conto foi publicado em 1906. E ainda vem me dizer, que ele é moderado, escreve gostosinho e não bate de frente em ninguém?!?
Moderado sou eu. Astolfo pega, mata e come!
Apertem o play no quadro abaixo e leia A Última Sessão, conto sobre o comportamento da Câmara de São Luís, durante a mudança de regime.