Tensão e ameaças forçam retirada de ‘guardiões da floresta’ de terra indígena
Índios de diferentes etnias acampados na Esplanada dos Ministérios, em BrasíliaDa Folha
Quando a Folha chegou à aldeia Lagoa Comprida, no coração da terra indígena Arariboia, após cumprir 34 km em quatro horas de viagem por uma trilha acidentada, encontrou as ruelas da região quase vazias na manhã do último dia 19.
A professora indígena Inara Souza depois explicou: “Os homens hoje passam a noite vigiando e colocam as mulheres e crianças para se esconder no mato. Eu estava lavando roupa e me assustei quando vocês chegaram. Mandei as crianças correrem todas para o mato”.
Outra professora, Cleane Rodrigues, confirmou: “As mães aqui estão todas com medo, as mulheres com medo. Tem muitas crianças que não vêm mais para a sala de aula. Ontem fui dar aula e tinha duas crianças na sala. É porque estão escondidas dentro do mato. Elas ficam assustadas quando ouvem a zoada dos carros. Até a gente também”.
Tensão e ameaças veladas cresceram no interior da Arariboia, onde vivem mais de 12 mil guajajaras e isolados awás-guajás, desde que, em 1º de novembro, o indígena Paulo Paulino, 26, conhecido como Lobo Mau, um integrante do grupo de fiscalização Guardiões da Floresta, foi assassinado com um tiro por invasores.
Após o assassinato do “guardião”, o sentimento de abandono e insegurança se espalhou pelas mais de 170 aldeias dos 413 mil hectares da Arariboia demarcados em 1990.
Não há cancelas nas entradas das aldeias e nenhuma base de fiscalização do governo federal. Estranhos entram e saem a qualquer momento, às vezes cruzando as aldeias de motocicleta de noite e de madrugada.
Sem internet ou outro sistema de comunicação entre as aldeias, os índios ficam às cegas sobre o que se passa no seu próprio território. Até o último dia 25, nenhum representante de um órgão federal havia estado nas aldeias Jenipapo e Lagoa Comprida, segundo os índios.
Ameaças que circularam dentro e fora da Arariboia levaram o Governo do Maranhão a retirar às pressas, por tempo indeterminado, três “guardiões”: o coordenador do grupo, Olímpio Guajajara, 45, único índio sobrevivente do ataque do dia 1º, Laércio, 34, e Auro, 34.
O grupo foi criado em 2013 para conter as invasões. Hoje teria mais de 120 “guardiões”, que, como voluntários, organizam expedições para localizar e apreender carregamentos de madeira e caça ilegal.
Numa casa utilizada pelo governo no programa de proteção a testemunhas em uma cidade do Maranhão, o trio contou à Folha que as ameaças chegam por terceiros e, por isso, tiveram que deixar a área a contragosto.
“A gente se sente muito frustrado e impotente. Como assim estamos fora do nosso território e eles estão lá fazendo o que querem? Recebemos uma notícia de que um dos envolvidos na emboscada [da morte de Paulo Paulino] andou por essas aldeias colhendo informações”, disse Auro.
“É para saber onde ficam nossas aldeias, onde fica nossa casa, quem são os parentes próximos. Enquanto estamos fora da área, eles estão mapeando a nossa volta também”, acrescentou.
Recordando as mortes ocorridas no território nos últimos 20 anos, Olímpio, pai de nove filhos, se emocionou.
“Já perdi primo, sobrinho, minha irmã. E por último agora perdi meu cunhado [Paulino]. É muito doído. É uma injustiça muito grande contra os nossos direitos”, disse.
“Será que as pessoas não sentem que nós sentimos dor, sentimos tristeza, sentimos humilhação? E até agora nenhum desses caras que cometeram esse tipo de crime contra o meu povo, contra meus parentes, nenhum está na cadeia ainda”, completou.
Na aldeia Jenipapo, onde vivem 50 famílias guajajaras, outro “guardião” sob ameaça é Ronilson Lima, 33, o Flái. Ele se diz determinado a continuar a fiscalização. Os “guardiões” usam motocicletas e espingardas do tipo cartucheira.
“A gente vai continuar, não vai se intimidar com a perda de um parente nosso. Não vamos parar, não. Ou acaba ou piora. Um dos dois tem que acontecer. Não vamos abaixar a cabeça para esses caras.”
As famílias do Jenipapo também vivem apreensivas com boatos de uma suposta retaliação de não indígenas pelas mortes do dia 1º de novembro. A preocupação maior é com os que saem da aldeia para algum compromisso nos povoados e cidades da região.
As cerca de 50 crianças que estudam são levadas sem segurança, em caminhão pau de arara, à escola que fica em um povoado a 7 km da aldeia.
José Inácio, 51, cacique da aldeia Lagoa Comprida, onde vivem 55 famílias e 170 crianças, disse que “quase todas as lideranças que defendem a terra sofrem essas ameaças”.
“Eu mesmo já enfrentei muito isso, porque somos responsáveis por esse povo. Porque nós é que saímos lá fora para cobrar a política de proteção territorial junto ao governo do estado, à Funai. E eles ficam sabendo quais são as pessoas que ficam correndo atrás para defender”, afirmou.
“Nós somos avaliados por isso pelos madeireiros. A gente perde aquela liberdade que a gente tinha de andar na rua, de sair. Fica com medo. Não é toda hora que a gente anda.”
A Arariboia há anos é invadida por madeireiros e caçadores ilegais por diversos pontos do território, muitas vezes com autorização de indígenas subornados com pequenos valores.
A partir de 2013, os “guardiões” começaram a “retomar” aldeias que antes eram ligadas ao roubo da madeira.
Dados de satélite analisados pelo ISA (Instituto Socioambiental), porém, mostram a explosão dos problemas desde a campanha eleitoral vencida por Jair Bolsonaro.
De setembro de 2018 a outubro deste ano, os alertas de desmatamento cresceram mais de 1.300%, de 340 para 4.800, e os ramais abertos na mata por madeireiros saltaram 27%, de 981 km para 1.240 km.
Desde o ano passado, os “guardiões” apreenderam nove caminhões e dois tratores, parte dos quais foi incendiada. Os indígenas atribuem boa parte do aumento às declarações de Bolsonaro contra a demarcação de terras indígenas.
Aumentaram também ofensas aos indígenas. “Antes do governo Bolsonaro, a gente sofria ameaças, preconceito, mas de um modo mais velado. Hoje não, é explícito”, disse Auro.
OUTRO LADO
O Ministério da Justiça, comandado por Sergio Moro, disse que as perguntas deveriam ser dirigidas à Funai (Fundação Nacional do Índio) e não se manifestou.
O órgão indigenista afirmou que “a vulnerabilidade territorial relacionada principalmente à degradação e desmatamento ambiental” na Arariboia “vem sendo acompanhada e combatida” pelo órgão.
Disse ainda que, “em conjunto com outros órgãos, como a Polícia Militar Ambiental do Maranhão, Ibama e Polícia Federal, tem realizado ações de fiscalização neste e em outros exercícios, além de apoiar atividades preventivas de monitoramento em diferentes terras indígenas do Maranhão”.
Informou também que “vem dialogando com os ‘guardiões’, equacionando as atividades desenvolvidas pelo grupo e as possibilidades de apoio por parte desta instituição”.
A Polícia Federal informou que “monitora a situação das terras indígenas” no Maranhão e que “prosseguem as investigações que apuram o duplo homicídio” na Arariboia.