No último sábado,26, ao ler matéria da Folha destacando que os ministros e aliados de Lula estavam apreensivos com a possibilidade de que “ações precipitadas [prisão]”contra Bolsonaro “inflamem ainda mais a sociedade”, cheguei a pensar que por motivo de desespero havia algum princípio de pane na linha de produção. O que estava ali publicado, da manchete à matéria, não correspondia ao padrão fake a que já estávamos graciosamente acostumados.
No entanto, o que vim a perceber com a leitura de Gramática da Manipulação, de Letícia Sallorenzo, é que, ao contrário do que eu imaginava, a Folha agia de caso pensado.
O livro é sobre o uso das palavras nas construções das manchetes dos jornais O Globo e Folha de São Paulo para beneficiar Aécio Neves na campanha de 2014 contra Dilma Rousseff.
A pesquisa e as análises objetivas de Sallorenzo permitem entender o porquê de a Folha publicar matéria sem nenhuma preocupação com as mentiras que não escondia e a manchete exibia.
Durante todo o sábado a página digital do matutino paulistano estampou “Ministros e aliados de Lula veem com apreensão eventual prisão de Lula”. O que seria menos tóxico, se não viesse acompanhado do subtítulo, “Avaliação é a de que ações precipitadas contra ex-presidente podem inflamar ainda mais a sociedade e fortalecê-lo”.
Reunir Bolsonaro, ministros, aliados, prisão, ações precipitadas e divisão da sociedade em uma só manchete é o artefato que nos remete à gramática produzida por Letícia..
Dissertação de mestrado, uma das bases teóricas do trabalho é o estudo que a Psicologia Cognitiva vem realizando há cerca de 45 anos sobre o impacto do título na cognição humana.
Em 1977 a pesquisa do professor Kozminsky Compreensão alterada – o efeito de títulos tendenciosos na compreensão textual – considerada por Letícia estudo mais relevante até hoje, na sua área de interesse – concluiu que o título tem o efeito cognitivo de afetar a seleção da informação de um texto e a organização dessa informação na memória humana.
“Se o título for tendencioso, a aquisição da informação por parte do leitor será tendenciosa, quer ela se dê pela leitura da notícia completa, quer pela inferência do conteúdo da notícia, uma vez que quem lê a manchete de um jornal não vai ler necessariamente a notícia”, explica Sallorenzo.
Se os estudos de Kozminsky são de 77, onde rede era um tecido com punhos estendidos entre dois armadores e o smartfone talvez um aparelho usado pela família Jetsons, não é preciso desenhar que nesses tempos online os títulos não mais conduzem ou direcionam à compreensão do texto; os títulos determinam o que diz o texto, sem que o leitor precise sequer compreendê-lo.
Daí toda a mensagem, a fake, o que quer que seja a quatro, estarem contidas no título que compõem a manchete.
A matéria, por seu turno, é o típico teste aplicado na seleção de estagiários, igual a uma prova do Enem: primeiro o tema; depois a redação.
Escrito pela jornalista e linguista Letícia Sallorenzo, com prefácio do jornalista Franklin Martins, Gramática da Manipulação é o resultado da dissertação de mestrado defendida pela autora em março último pelo Programa de Pós Graduação em Linguística (PPGL) da Universidade de
Brasília, sob o título Gramática e Manipulação: Análise cognitivo-funcional de manchetes de jornais durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2014.
No livro, escrito em linguagem simples e informal, Sallorenzo analisa 340 manchetes de jornal internas e de capa, publicadas pelos jornais O Globo e Folha de S.Paulo durante o segundo turno das eleições. Antes da análise, a autora explica as diferenças entre sintaxe, semântica e pragmática, e como as informações linguísticas são organizadas no cérebro, no que ela identifica como processo de categorização. Também apresenta uma pesquisa acadêmica que comprova que um título tendencioso levará o leitor a apreender o conteúdo da reportagem de forma tendenciosa.
O livro é uma aula de português leve e divertida, e a garantia de que você nunca mais vai ler uma manchete de jornal como antes.
Chega a ser constrangedor, por exemplo, os ministros apreensivos com eventual prisão de Bolsonaro, a que se refere o título, são dois “ouvidos sob reserva”.
A confidencialidade, nesse caso, não atesta a gravidade, tampouco a possível veracidade da denúncia. Por uma questão muito simples: Em um universo de 35 ministérios, não se pode concluir por amostragem as declarações de dois ministros.
Embora, no tempo correto, é imoral destacar na manchete “Ministros”, dando a entender o conjunto ou boa parte do primeiro escalão.
Além de não divulgar os nomes, o jornal não divulgou os partidos avalistas dos dois ministros.
Se desse o mínimo valor a sua própria credibilidade, essa condição tão fora de moda entre os grandes veículos de comunicação do país, a Folha não publicaria o caso dos ministros, sem que pudesse tornar público suas filiações partidárias.
Afinal, como poderia garantir o que publica se dos 35 ministros 3 são do PSD, 3 do PMDB e 2 do União, partidos que deram sustentação aos quatro anos de trevas bolsonarista?
Com 26 parágrafos a FSP preenche os 9 primeiros com uma narrativa dos fatos, mas que não passa de livre suposições; objetos do desejo sem qualquer vínculo com a realidade.
Bem estruturada e com padrões de fábrica, cada invencionice, cada obviedade e cada absurdo no seu quadrado. E assim vai-se criando “a sensação de uma opinião muito bem fundamentada”.
No 3o e 7o parágrafos o jornal faz uso do advérbio “apesar” para ir de encontro aos parágrafos que os antecedem. Seria uma espécie de efeito Platão negacionista; onde a verdade não é resultado do choque, do conflito dos contrários. Mas dos iguais.
Observe no print acima A matéria começa reforçando o título; em seguida diz que “O cenário em que Bolsonaro poderia ser preso atiçou a militância. E, no terceiro parágrafo surge o “apesar” dos integrantes do governo e articuladores políticos, contrapondo a militância atiçada.
Esses integrantes e articuladores ainda contribuem para desacreditar as investigações da Polícia Federal e por tabela o Ministro da Justiça Flávio Dino.
Integrantes anônimos ainda vai, por temor de perder o cargo; mas articuladores políticos anônimos, é coisa nova.
Em todo caso, segundo a Folha, os integrantes e os articuladores torcem para que o pedido de prisão seja do MPF e com robustez de provas.
“Isso porque a eventual detenção de Bolsonaro poderia contribuir para inflamar e dividir mais a sociedade”.
Observe agora a segunda fase na linha de montagem da fakefolha. Essa mais cara dura e miolo mole.
No 5º e 6º parágrafos, as investigações que envolvem Bolsonaro. A tentativa de golpe de estado, a venda das joias árabes e a difusão de fake news sobre o processo eleitoral; nada que fuja do tom ou fruto de declaração anônima.
E aí, o 7º parágrafo com mais um “apesar”; demonstra o porquê das acusações contidas no 5º e o 6º parágrafos.
Novamente, segundo a Folha, um parlamentar muito próximo a Lula compara as atuais investigações da PF contra Bolsonaro com as da Lava Jato contra Lula e as do impeachment contra Dilma Rousseff.
“Este congressista lembra que muitos petistas foram alvos de investigação e avalia que essa onda de decisões precipitadas e que ele considera arbitrárias tem que acabar”, diz o amigo do peito, irmão camarada.
Gostei muito, caro Garrone. (Guto)