
Mário de Andrade Macieira *
Num tempo, página infeliz da nossa história,/Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações/ Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações.(Chico Buarque)
O grande sociólogo português Boaventura de Sousa Santos já advertia que as democracias também morrem democraticamente. Afirmou ele:
“Continuam a ser possíveis rupturas violentas e golpes de Estado, mas é cada vez mais evidente que os perigos que a democracia hoje corre são outros, e decorrem paradoxalmente do normal funcionamento das instituições democráticas”.
“As forças políticas anti-democráticas vão-se infiltrando dentro do regime democrático, vão-no capturando, descaracterizando-o, de maneira mais ou menos disfarçada e gradual, dentro da legalidade e sem alterações constitucionais, até que em dado momento o regime político vigente, sem ter formalmente deixado de ser uma democracia, surge como totalmente esvaziado de conteúdo democrático, tanto no que respeita à vida das pessoas como das organizações políticas.”[1]
Na tarde de ontem, fomos todos mais uma vez surpreendidos pelo discurso antidemocrático manifestado através de um dos membros do Congresso nacional e filho do Presidente da República, que defendeu um “novo AI 05” se as manifestações da esquerda se radicalizassem.
Não foi a primeira vez. As ameaças à democracia são reverberadas cotidianamente pelos Bolsonaros e pelas forças que o apoiam, poderiam ser enumerados diversos exemplos , ameaças contra o Supremo, a apologia a tortura, a tentativa de controle ideológico da liberdade de cátedra, anuncio de eliminação física dos adversários que passaram a ser vistos como inimigos, licença para matar concedida a policiais, e muito outros tipos de ameaça, como o ataque à liberdade de imprensa e a tentativa de estrangular as organizações sindicais e estudantis.
Como alerta Boaventura, vai havendo um esvaziamento de todo conteúdo democrático das instituições, embora formalmente elas permaneçam democráticas, nesse processo tem grande peso a eleição de autocratas; a ilimitada influência do poder econômico sobre os processos de deliberação democráticos, numa verdadeira plutocracia; as fakenewse o controle das redes sociais por algoritmos nas redes sociais, que poderia ampliar fortemente a participação democrática dos cidadãos, porém tem se prestado à distorção de consciências, sentimentos e crenças, impulsionadas pelo chamado big-data.
O processo descrito pelo sociólogo lusitano parece se encaixar perfeitamente ao pesadelo que vivemos no Brasil após a eleição do neofacista Bolsonaro e da efetivação de sua interminável série de ataques à Constituição em todos os campos. No plano dos direitos civis e políticos, no plano das liberdades individuais, no plano dos direitos econômicos e sociais e no plano dos direitos ambientais e culturais, seria exaustivo enumerar tatos ataques.
O mais recente e mais violento, a defesa de um novo AI 5 foi apenas um ponto de um processo de ataque à democracia que tende a se agravar se as forças populares e democráticas não forem capazes de organizar uma contundente e decidida resistência ao arbítrio e de proteção à Democracia.
Para recordar, porque como disse o poeta, são fatos talvez desbotados da memória das novas gerações, vale registrar que o AI 05 implicou na alteração da própria Constituição, na suspensão das atividades dos parlamentos, na cassação de mandatos de governadores, prefeitos, deputados (estaduais e federais), senadores, magistrados e todos os demais funcionários públicos, inclusive professores. Implicou na cassação dos direitos políticos dos adversários do regime, na possibilidade de que o Presidente da República decretasse a suspensão do funcionamento das casas legislativas, o Estado de Sítio, a intervenção em estados e município, a supressão da garantia do Habeas Corpus, abrindo margem para prisões, torturas, desaparecimentos e banimentos.
A defesa da adoção de um novo AI 05 deve implicar urgente e forte sanção contra o parlamentar que, no caso, não pode invocar a imunidade parlamentar para atentar contra a Constituição. Deputados e Senadores também respondem por crimesde responsabilidade.
A defesa de tal ruptura com a Constituição, só por si mesma, por significar apologia ou incitação ao crime (art. 287 do CP). Não se opõe a imunidade parlamentar contra a defesa aberta de um golpe de Estado, nesse caso submete-se o parlamentar à perda do mandato por quebra do decoro parlamentar (art. 55, II) da Constituição.
Teria a Constituição de 1988 ainda força e densidade normativa para ser imposta contra seus inimigos?
[1]http://midianinja.org/boaventurasousasantos/as-democracias-tambem-morrem-democraticamente/
- Mário Macieira é professor da UFMA, Mestre em Direito pela UFPE, ex-presidente da OAB/MA